por Calbuque

Fernanda Abreu
Amor Geral

Rio, 30 graus. É noite de outono. De cabelos presos, camiseta e calça jeans, Fernanda Abreu está sentada numa cadeira em seu estúdio, apropriadamente batizado como Pancadão, numa casa no Horto, sossegado bairro da Zona Sul da cidade. Ela se aproxima da mesa de som, aperta alguns botões e bota para tocar “Outro sim”, estrondosa faixa de abertura de seu novo álbum, “Amor geral”. Quase imediatamente, a batida programada por Wladimir Gasper (nome artístico de Pedro Bernardes) explode nas caixas, frequências graves se enroscam na cintura do ouvinte como serpentes imaginárias e samples, picotados, abrem caminho até a voz de Fernanda, que rima e canta: “Outra cabeça, sentença/Outro recanto, encanto/Outra viagem, vertigem em outro mar/Outro sentido ou saída/Outra maneira ou medida/De dar a volta por cima, querendo dá”.

– Nos últimos tempos, aprendi muito com (os produtores) Tuto Ferraz no estúdio dele em SP e Sérgio Santos no meu estúdio no Rio, sobre áudio, equalização, compressão, frequências e tal. E queria um disco que soasse bem, do subgrave ao agudo – explica ela, que assina a direção musical e produção executiva do disco. Mais do que detalhes técnicos, “Amor geral” – que tem projeto visual de Giovanni Bianco – gira em torno desses últimos tempos mencionados por Fernanda. Afinal, é o seu primeiro trabalho em dez anos, desde que lançou o álbum “MTV Ao Vivo”. Foi um tempo em que Fernanda trocou manchetes pop
por linhas bastante pessoais.

– Nesses dez anos, a vida me apresentou algumas situações difíceis e precisei priorizar minha vida pessoal. Tive um processo de luto muito estranho da minha mãe, que ficou em coma por seis anos, somado ao sofrimento do meu pai que passou a vida ao seu lado, vivi um longo processo de separação do meu casamento de 27 anos, minhas (duas) filhas precisando de mim e eu delas. Senti que tinha que administrar esses desafios da forma mais amorosa possível. Segurei uma onda gigante e nem pensava em criar um material novo, até porque o cenário da música estava numa transformação violenta – confessa ela. – Trabalhei direto, criei um novo show Eletro-Acústico, participei de projetos especiais de outros artistas, continuei fazendo meus shows do MTV ao Vivo, mas não me sentia inspirada nem instigada para fazer um álbum de inéditas.

Como outros artistas, vivi um compasso de espera, observando as mudanças da indústria e do mercado. Era como o samba-enredo da União da Ilha, “o que será, o amanhã? Responda quem puder…”. O amanhã desse retiro começou a chegar quando entrou em cena o sentimento que dá título ao disco e sua hipnótica faixa de encerramento (de letra “E sabendo que vamos morrer, sentimos fome de viver/Não é essa a função do amor?/É não deixar esmorecer essa fome de viver/De sobreviver em meio à pancadaria da infelicidade à granel”).

– Quando conheci o Tuto Ferraz e me apaixonei, uma energia nova, muito inspiradora e potente me fez naturalmente começar a compor e produzir novas
músicas – revela. – Um dos motivos desse disco se chamar “Amor geral” foi a percepção de que em todos esses momentos pelos quais passei, o amor foi o sentimento mais forte que senti tanto nos momentos de alegria como de tristeza. A letra dessa vinheta “Amor Geral” pode parecer um papo entre um casal, mas o pano de fundo está no coletivo e na simbólica relação entre amor e ódio, dois poderosos sentimentos que movem a humanidade.

Com “Amor geral”, Fernanda retoma uma linha evolutiva que atravessou discos fundamentais dos anos 90, como “SLA Radical dance disco club” (90), SLA 2 – Be sample” (92) e “Da lata” (95), nos quais ela se firmou como pioneira no uso de samplers como instrumento, entusiasta de primeira ordem do funk carioca, sambista de verso e dança e porta-bandeira da disco music. É exemplar, por exemplo, a grooveada faixa “Tambor”, que tem a participação, quase surpresa, de Afrika Bambaataa, grande mestre do hip-hop e de suas fusões com os batidões dos bailes do Rio, sintonizado com a percussão de Jovi e Pretinho da Serrinha. É trap com samba, é funk com balanço verde-amarelo, é beatbox com berimbau. (“E quanto toca o tambor/É festa, eu canto, eu danço/E quando toca o tambor/Acende a esperança”, celebra Fernanda).

Conduzindo parceiros antigos (Liminha, Meme, Laufer e Fausto Fawcett) e novos (Qinho, Wladimir Gasper, Sergio, Tuto e Donatinho), Fernanda desfila, ao longo das 10 faixas do álbum, por diversas levadas, sem perder o suingue jamais. “Double love” é um balanço-funk estilo batuque digital, metralhadora musical. “Valsa do desejo” é uma balada com ares cinematográficos. “Por quem” (na qual canta “Computar a dor/É dureza/Computar a flor/É beleza”) e “Deliciosamente” são refrescantes mergulhos nas pistas disco-houseiras. “O que ficou” é uma delicada pintura de tons ambientais. E a faixa-título resume o disco com suas roupagens futuristas e texto cortante como um sabre de luz (“Toneladas de ‘I love you’ desabam a todo instante nesse mundo/Toneladas de ‘Eu te odeio’    desabam a todo instante nesse mundo…). Mesmo depois dessa ausência, Fernanda não perdeu a habilidade de ouvir “o coração do mundo batendo”.

– Acho que cada artista procura seu som e me orgulho de ter uma assinatura. Gosto de trabalhar com a estética musical que os arranjos e a produção em estúdio me permitem. Por isso, além de cantora e compositora, me sinto como uma espécie de artesã de sons – diz ela, que comemora também a chegada de todo seu catálogo (7 álbuns) às plataformas digitais na sequência do lançamento de “Amor Geral”. – Num primeiro momento, fiquei um pouco receosa de lançar qualquer trabalho artístico nesse momento em que a intolerância, o cinismo, a falta de escuta parecem imperar. Mas percebi que é exatamente esse o momento propício pra vir com “Amor geral”. Então, quando vozes conservadoras gritam contra o aborto, contra o direito das mulheres, contra os negros, contra a diversidade sexual e religiosa, venho chegando, gentilmente, com o meu antídoto.