por Hermano Vianna

DA LATA

Para quem ainda não sabe, Da Lata vem anunciar: o pior já passou, o Rio está salvo, e a salvação do Rio é a salvação nacional. Não importa a torcida contrária das manchetes de jornal ou das rajadas de AR-15. Como num sonho utópico de Darcy Ribeiro, a cultura carioca já reiventou a cidade, criando as bases para a instauração de um período de tranqüilidade e criatividade que vai tomar as ruas como um arrastão.
Devaneio? Irresponsabilidade polyanna de quem não quer ver que o perigo mora ao lado, isto é, aqui dentro? Nada disso: Fernanda Abreu sabe que o perigo é evidente, mas sabe também (como já disse um poeta romântico alemão) que é no perigo que está a salvação, que é possível transformar perigo em salvação. Só não enxerga o outro lado da moeda ou o outro lado do túnel quem não quer.
Por pouco eu não caí neste conto: o de que a cultura carioca estava perdida para sempre, e que o destino da cidade era se transformar num apartheid de guetos em guerra civil. Quando aconteceu aquele primeiro arrastão no Arpoador, e os funkeiros foram transformados em bodes expiatórios para todos os problemas da cidade, pensei que dali para frente só o pior poderia acontecer. Os grupos sociais passariam a viver isolados e apavorados. O Rio aprenderia, sob o império e a publicidade da violência, o credo americano: aquele para o qual, segundo Caetano Veloso, branco é branco, preto é preto, e a mulata (como o samba, como o funk) não é a tal.
Naquela época, eu estava preparando minha tese sobre a transformação do samba em música nacional brasileira. O que mais me impressionava nessa história era ver como existia, no Rio do início deste século, uma atividade febril de contatos entre elite e povo entre asfalto (ou pedras portuguesas) e favela, entre as zonas que um dia seriam chamadas de Sul e Norte. Tudo o de melhor aconteceu na cultura musical (e não só nela, vide o exemplo de Hélio Oiticica) carioca e brasileira, do samba à Jovem Guarda, não foi produto de um único grupo social ou de um único gueto. Isolar o funk seria suicídio, pura e simplesmente.
A verdade é que o isolamento do funk (e o isolamento do Rio pobre) foi mais uma ilusão de ótica. As mesmas mídias que viam os funkeiros como demônios faziam de Xuxa a embaixatriz do funk. O balanço eletrônico produzido nos estúdios de Lins e Vasconcelos (terra de Marlboro) invadiram (junto com o pagode suingue, o que não deixa de ser curioso), as festas infantis dos mais fechados e vigiados condomínios da Barra. E do outro lado da cidade partida, não foi só a tecnologia armamentista que subiu o morro, mas também a tecnologia musical do sampler e da bateria eletrônica. Quando ninguém esperava, e no pior momento político-social para isso acontecer, a cultura eletrônica de morro tomou conta da programação normal das rádios cariocas de maior audiência. Preste atenção no rap do Borel: aquilo não é funk de Miami, aquilo é funk-samba e tudo mais, aquilo só poderia ter sido produzido no Rio. E cante comigo, parodiando o refrão de melhor música de 95: “eu só quero ser feliz, andar tranqüilamente na cidade onde eu nasci.”

II

Então, a cultura carioca deu a volta por cima: Da Lata é a celebração desse novo Rio. Mais do que isso: Da Lata é parte do processo de recriação da identidade carioca, a reivenção do orgulho de ser daqui, de redescobrir não só os tesouros da favela (como diz a letra de Tudo vale a Pena), mas os tesouros de todos os outros lugares (vide a letra de Esse é o Lugar), indicando qual vai ser o Rio do futuro, do novo armistício.
O ufanismo aqui não é nada inocente. Fernanda Abreu sabe que, hoje em dia, todo mundo, mesmo o mais orgulhoso carioca (e quem pode ser mais orgulhosamente carioca do que Fernanda Abreu?) é assim como ela canta: “eu sou um pouco daqui, eu sou um pouco de lá.” Para esse dilema não há salvação, o melhor é aprender viver aqui e lá, totalmente globalizado e totalmente localizado, tudo ao mesmo tempo “vou vivendo, misturado, misturado”. Com relação à mistura, o Rio já nos deu a régua e o compasso. A dance music pode nos ensinar o resto: principalmente a usar o computador para continuar misturando tudo. A dance music carioca é a nova malandragem, a nova teoria da mestiçagem cultural, o ritmo mulato que é o tal. A percussão da Mangueira é reprocessada no computador de Will Mowat; o pandeiro de Marcos Suzano e o tamborim de Bodão são digitalizados no sampler do Liminha: a tecnologia só vem acelerar e potencializar a sabedoria misturada do Rio.
O Rio não é melhor do que qualquer outro lugar. Mas o Rio é a “cidade do swing, sensual demais”. O Rio é o “quente paraíso do espírito excitado pela festa dos sentidos animados pelo sol”. Ninguém pode com uma cidade como essa. Uma cidade como essa tem lições importantes para dar ao mundo, que só ela pode dar. Sem o Rio (e, por outros motivos, sem São Paulo, sem Manaus, sem Porto Alegre, sem Paconé, sem Jardim do Seridó, etc.) o Brasil não seria nada. E sem o Brasil o mundo seria muito pouco misturado e portanto muito chato.