por Hermano Vianna

Entidade Urbana tem uma pré-história de risco que é a seguinte: recentemente, isto é, nas últimas duas décadas, para a surpresa e vergonha dos cariocas, o Rio de Janeiro passou a ser conhecido como uma Cidade Partida. De um lado, a Zona Sul, os ricos, os condomínios e os shopping centers e os cinemas multiplex da Barra. Do outro lado, a Zona Norte, a pobreza, os subúrbios, as favelas, os bailes funk. Entre um lado e outro, na fronteira, apenas o medo, a ignorância, a violência, o comércio de armas e drogas.

Durante todo esse tempo de Cidade Partida, ouvi centenas de vezes a afirmação de que o número de assassinatos no Rio era maior do que aquele dos piores tempos de Beirute em guerra. Não fui conferir as estatísticas. Nem desconfio delas. Mas sei que toda essa descrição da “nossa” guerra civil tem a força de um mito, um mito tão poderoso como aquele que antigamente alimentava a imaginação do mundo, do Brasil e dos próprios cariocas, quando acreditávamos viver na Cidade Maravilhosa, a cidade da miscigenação, da mistura, da alegria carnavalesca constante.

Não devemos estabelecer com os mitos a mesma relação que temos com a verdade, ou com a mentira. Mas não falo nada de novo ao dizer que mitos não devem ser confundidos com a realidade. A idéia de que hoje vivemos numa Cidade Partida não deve nos iludir: a cidade não é, nunca foi e nunca vai ser – totalmente – partida. Ao contrário do que dizem as versões mais radicais do mito, as duas “zonas” nunca estiveram totalmente separadas.

Apesar das aparências, e das notícias de jornal, um vigor cultural e social constante – sempre renovado – manteve vivo e resistente o que existe nesta cidade de “maravilhoso”.

“Durante muito tempo ouvi falar
De cidade repartida, guetos, apartheid, velhas
Não me venha com esse papo, nem pensar
Eu tô falando mais a frente, o que pode ser
O que vai ser, o que virá”

Fernanda Abreu inventou sua carreira e sua música ao mesmo tempo em que a cidade “se partia”. Poderia – apavorada como nós estávamos e ainda estamos – ter “partido” também sua arte, por trás de barricadas estéticas/policiais. Porém escolheu desafiar o novo mito, estabelecendo pontes e mediações onde não “deveria” haver nenhum contato, nenhuma “contaminação”: entre o funk de favela e o rock do playboy; entre o samba do morro e o drum’n’bass/bossa de butique; entre o charme da periferia e a dance music da boate high-society. Cada um de seus discos era também um manifesto anti-apartheid cultural, uma festa produzida nas regiões onde as “Zonas” se encontram, um boderhack, uma demonstração que poderia ser filiada ao movimento “kein mensch ist illegal” (“ninguém é ilegal”), acampamentos artísticos realizados em fronteiras “problemáticas” de países de todo mundo.

Os cariocas compraram essa briga. Tanto que em recente concurso, com urnas colocadas nas ruas, para se escolher qual a música que mais tinha a cara da cidade, “Rio 40 Graus”, hino de uma urbanidade mutante (pós-partida e pós-maravilha) cantado por Fernanda Abreu, quase venceu todas as bossas novas reconhecidas mundialmente e o próprio hino do carnaval da cidade, o tal Cidade Maravilhosa. Era um sinal evidente de que os habitantes do Rio conseguiam, junto com Fernanda Abreu, distinguir criatividade cultural e força vital onde os apóstolos do apocalipse urbano só enxergavam caos estéril e mais problemas.

Entidade Urbana é a seqüência lógica do combate “carioca”. Fernanda Abreu e todos nós sabemos que a situação (partida ou maravilhosa) do Rio não é única ou absolutamente original, mas sim a situação-limite de uma “condição social” que se tornou planetária. Não importa onde estamos. São Paulo; Los Angeles; Lagos; Xangai; Jacarta; Moscou: toda grande cidade é um pouco – na verdade é muito – “Rio 40 Graus”.

E como não se cansa de dizer o arquiteto e pensador Rem Koolhaas, o vigor urbano (para pior e para melhor) é uma evidência que triunfou contra todas as previsões pessimistas e tentativas de controle propostas por urbanistas das mais variadas escolas. Em Entidade Urbana, Fernanda Abreu canta os territórios “da beleza e do caos” da nova mega-urbanidade global. Seu disco não é apenas um outro manifesto, mas funciona como um manual de sobrevivência, ou de boas maneiras, para se tirar o melhor partido da vida em nossas temidas e amadas grandes cidades.

“Tudo é cidade
É tudo igual
Em qualquer língua
Isso é geral”

Pois não há evidências de uma nova tecnologia social que venha superar o urbano e sua “parabólica excelência”. As sugestões de que a globalização e a Internet viriam criar um éden pós-geográfico que dispensaria os problemas das cidades (e todo mundo poderia fazer tudo online, mesmo isolado no meio do mato…) já se mostram pouco convincentes.

Pois qualquer rede precisa de nó. Quanto maior e mais vibrante o nó, melhor. O nó privilegiado da Internet parece não ser a nação, velha instituição da velha economia. Todos os sinais eletrônicos indicam um fortalecimento de grandes cidades (até o Vale do Silício precisa de San Francisco) como “campos” inconfundíveis para trocas de todas as espécies. O nó virtual não pode dispensar o nó real da urbanidade.

“A Terra inteira são cidades e cidades se alastrando
Sobem morro, descem vale, comem terra, bebem mar”

Na música, a distribuição global das mesmas informações digitais também convive com a confirmação das cidades como “sites” privilegiados de criação. A maior parte dos estilos que fazem sucesso via napster teve origem nas ruas, palcos e locais de ensaio de cidades bem determinadas. Para citar alguns exemplos: a música techno teve origem em Detroit; a house teve origem em Chicago; o hip hop (incluindo o rap) teve origem em Nova York (mais especificamente no bairro do Bronx); o dub em Kingston; o jungle em Londres; o rai em Oran; a juju em Lagos…

“Toda a Terra inteira quer
Balançar”

O nascimento e o desenvolvimento de todas essas músicas têm conexões profundas e evidentes com a dinâmica da vida social e cultural de suas cidades de origem. Muitas vezes as suas letras (como as que canta Fernanda Abreu) abordam explicitamente assuntos do cotidiano urbano que as gerou, tornando-as parte integrante da invenção sempre renovada de suas identidades culturais mutantes.

Os jovens do Recife se orgulham do Mangue Beat; os jovens de Seattle se orgulham de viver na mesma cidade que criou o grunge (mesmo o Mangue Beat e o grunge sendo tão críticos dessas realidades urbanas); e assim por diante.

A especificidade local não impede que os vários estilos sejam adotados por músicos de outros lugares (com realidades urbanas completamente diferentes). Contudo, a cidade que inventou cada estilo continuará sempre a ser reverenciada como um centro quase mítico de “origem” ou de “autenticidade”, gerando até mesmo “peregrinações” de gente de todo mundo para as suas ruas, como a de jazzistas para Nova Orleans ou a de amantes de tango para Buenos Aires.

Não custa nada repetir: é interessante notar a permanência, com seus fortes laços emocionais, dessa marca local dos estilos musicais dentro de uma indústria fonográfica ou pós-fonográfica totalmente globalizada. O “local”, no mundo “global”, confunde-se com o urbano. E os estilos musicais mais globais parecem ser aqueles mais abertos para dialogar com complexas e variadas realidades urbanas, gerando uma quantidade infindável de subestilos ou de fusões.

O rap do Bronx nova-iorquino, por exemplo, ganhou características também bem marcantes e específicas ao ser adotado por músicos de outras cidades: há o rap de Miami (conhecido como Miami Bass, e cujo estilo já é copiado em muitas cidades do mundo, incluindo o Rio – como reafirma a faixa “Baile da Pesada” deste CD); há o rap de Los Angeles; há o rap de São Paulo; há o rap de Maputo. Assim como há a house de Milão, a house de Frankfurt, a garage de Nova York, e tantas outras variações.

Os MCs de UK garage celebram a cidade que criou esse estilo musical gritando para o público: “It’s a London Thing!” Que Coisa é essa? (Em outras palavras: qual a força sedutora de Londres – ou de qualquer outra cidade?) Em Entidade Urbana, Fernanda Abreu dá parte da resposta (para mistérios como esse não é recomendável dar a resposta completa), a começar pelo título do disco. A cidade é uma entidade que possui quem vive nela e que deixa suas marcas em tudo o que nela for criado.

“Toda cidade é uma vampira
Sorrateira insinuante
Suga o corpo, a alma, o sangue de quem for seu habitante”

Mas não é uma marca totalitária, que apaga todas as outras marcas, que retira todas as outras energias. Até porque toda cidade sabe, e toda música urbana sabe, que sua própria existência correria perigo se suas ruas e ritmos não fossem também locais de encontro, encruzilhadas de muitas marcas e vibrações e estilos de vida e visões de mundo. A UK garage não existiria se não houvesse em Londres, entre outras coisas, uma vibrante cultura musical criada por imigrantes jamaicanos, que por sua vez não teriam participado da criação da UK garage se tivessem permanecido em Kingston (em Kingston, criariam outras músicas).

“Misturação de qualquer tribo
Misturada no prazer de outra gangue
Misturada no prazer de outra turma
Misturada no prazer de todo gueto”

Então todas as grandes cidades contemporâneas estão ligadas em rede, para além da Internet. Não dá para separar as Coisas de cada uma delas: suas Entidades convivem entre si, negociam, guerreiam, namoram, como fazem os deuses gregos ou os orixás do candomblé. Todas essas Coisas são parte de uma outra Coisa, uma mentalidade/corporeidade (pois a Entidade possui corpos e mentes) compartilhadas por todos os seres urbanos.

“Isso é a vida
É a natureza humana
Não tem saída
É a natureza urbana”
Entidade Urbana é a trilha sonora samba/funk de uma cidade transformada em prótese (portanto mais do que uma pele ou uma roupa), extensão de nossos corpos/mentes, nossa segunda natureza coletiva e local/global. Uma segunda natureza ao mesmo tempo assustadora e sedutora. A humanidade urbana é uma “excessiva humanidade”, um “colapso feroz”, fonte de “vida-ebulição”. Sendo assim, Entidade Urbana é antes de tudo a celebração da dança que se pode dançar à beira do abismo de um desastre urbano sempre anunciado e alegremente sempre adiado.