por Jamari França

Fernanda Abreu
Mtv ao Vivo

Até que enfim a gente pode levar para casa o imperdível show de Fernanda Abreu. Não perco um, todos muito bem produzidos por ela e por seu companheiro de vida Luiz Stein. Musa incontestável do Rock Brasil anos 80, ei-la, com tudo em cima, 20 anos depois do fim da Blitz, lançando diversão em estado puro no formato digital de som e imagem. E não apenas isso.

Com muito suingue e bom humor, ela faz um mapeamento da música negra brasileira, sua grande paixão, indo do samba, ao soul, ao funk velha escola, ao rap, hip hop e funk atual. Tudo isso no formato de banda, sonoridade com postura e garra de rock cheia de alma.

Toda a música de Fernanda está associada ao movimento. Ela começou a fazer dança ainda pequena e nunca subiu ao palco sem mostrar sua excelente forma. No DVD é possível curti-la em sua plenitude, com coreografias criadas por ela e executadas com as backing vocals Flávia Santana e Juju Gomes e com os dançarinos convidados, Juliana e as Fogosas, Bonde dos Magrinhos, Black Brothers e Brother Soul.

Apesar de ser plural, Fernanda é a personificação da mulher carioca, um título que os leitores do Globo Online lhe conferiram numa eleição direta em março de 2006. Do subúrbio à Zona Sul, no ensaios de escolas de samba, nos bailes funk das comunidades populares, onde chega Fernanda é bem chegada. O meio musical reconhece seu talento e determinação de sair do backing vocal da Blitz para desenvolver, ao longo de 20 anos, uma assinatura própria dentro da música brasileira. Ela é extremamente popular, num show ao ar livre na Praia de Copacabana no último primeiro de maio, 40 mil pessoas a acompanharam na maior empolgação. Ela sabe ser sofisticada de uma maneira simples que atinge todos os públicos, não tem erro.

Fernanda mostra, de  uma ótica carioca, a universalidade do ritual da música e dança. “Todo mundo ao mesmo tempo/ É roda que se mexe/ Toda a Terra inteira quer balançar”. É uma cultura cultivada nas noites do planeta, como anuncia ela na faixa de abertura, A noite: “A noite é negra/ E os holofotes vasculham/ Toda essa escuridão/ À procura de um lugar ideal/ Pra dançar e barbarizar”. Um ritual que se repete em todos os quadrantes desta bola azul onde vivemos. ”Baile da pesada” e a inédita ”Baile funk” (Rodrigo Maranhão) celebram o encontro, a primeira lembrando os DJs históricos Monsieur Lima, Big Boy e Ademir, os dois últimos criadores do baile que dá nome à música, e Pedrinho Nitroglicerina. Ela fala da repressão aos bailes funks pela polícia do Rio e seu ‘pecado mortal’ de ser festa de pobre.

”Kátia Flávia”, descrita pelo texto genial de Fausto Fawcett é o perfil perfeito das gatas que reinam nos bailes funk como primeiras damas do chefão local, seja ele do movimento ou de outros tipos de contravenção. Fernanda canta na primeira pessoa, encarnando a Kátia com muita garra e movimentação. Em “Brasil é o país do suinge” Fernanda nos leva a chacoalhar pelas danças da Terra Brasilis: “Vamo lá rapaziada todo mundo dançando” com o reggae e o tambor da crioula no Maranhão, carnaval na Bahia, Mangue beat no Recife e por aí vai. O Rio tem uma canção separada, “Rio 40 Graus”, novamente com o texto afiado de Fausto, um diagnóstico preciso do que viver neste purgatório da beleza e do caos que tem como símbolo o Cristo Redentor com as mãos para o alto.

Para recuperar o fôlego, algumas lentinhas, a começar pela nova leitura de “A dois passos do paraíso”, o clássico da Blitz. Com uma voz bem suave e tirando fora a fala do Arlindo Orlando, Fernanda nos apresenta uma velha canção como se fosse nova num contexto inteiramente diverso. “Dance dance”, a inédita de Rodrigo Maranhão, fala de um encontro que ilumina a noite, um romance associado a um baile. Exclusivamente no DVD está ”Um amor um lugar”, a canção de Herbert Vianna, presente no palco para dividir a canção com ela, um momento muito bonito. Fernanda lembra que Herbert foi seu grande incentivador quando começou a carreira solo, um papel que ele cumpriu também para outros nomes, como Plebe Rude, Legião Urbana e Biquini Cavadão, prova da grandeza do Paralama mor.
Fernanda cai no samba em ”Aquarela brasileira”, o samba enredo de Mestre Silas de Oliveira para o Império Serrano em 1964, o pandeiro de Jovi Joviniano e o violão de Rodrigo Campello. E o samba permeia outras canções como ”Veneno da lata”, a canção sobre um verão muito louco que os cariocas tiveram em 1986 (ou será 1988?). Outro samba enredo, da União da Ilha em 1982, “É hoje”, vira um híbrido de samba e funk com muito balanço e adereços na cabeça.

”Bloco Rap Rio 2006” e o ”Bloco Funk” são duas montagens geniais que incluem dois momentos da música negra, a dos anos 70 com Gerson King Combo, Tony Tornado, Banda Black Rio, passando por Gilberto Gil, velhas marchinhas de carnaval e o Planet Hemp de “Legalize já”.

No Bloco Funk, com a presença no palco do DJ e produtor Marlboro, ela parte de um sample de “O morro não vez” por Elis Regina para um pot-purri muito bem amarrado do Funk Brasil, pegando de clássicos como o “Rap da felicidade” a mais recentes como “Ela só pensa em beijar”. ”O MTV ao vivo” de Fernanda Abreu é o que há. A branquinha de alma negra arrasou.

Jamari França