por Tárik de Souza

FERNANDA ABREU NA PAZ

Em plena guerra civil ­ agora declarada ­ na cidade partida, Fernanda Abreu estréia seu selo Garota Sangue Bom com um míssil pelo desarmamento dos espíritos, o CD Na paz. Nenhuma contradição em termos. Fernanda acredita que seria impossível tomar a palavra numa sociedade bélica, como a atual, sentada na posição de lótus. Daí as armas que alugou para o trabalho gráfico “guns & roses” de Luiz Stein na capa. “Precisamos pensar sobre essa energia de violência que todo ser humano tem e está cada vez mais fora de controle pessoal e social. Como ela está entranhada na nossa psiquê e como a gente faz para segurar nossa raiva”, questiona. A idéia de Na paz é passar uma mensagem positiva, mas sem pieguice. Ir ao encontro de nossos sentimentos atávicos, rebuscar nossa índole ­ daí o violão sete cordas do produtor e parceiro Rodrigo Campello que alinhava o funk do disco, num “beat” desacelerado. “Os BPMs giram em torno de 88 a 106, o funk carioca entra na órbita de 128”, compara ela. “Nesse disco, o encontro entre o funk e o samba é mais estrutural do que rítmico. Subiu um degrau”, contabiliza, lembrando-se que a primeira fusão de que participou foi ainda na época da Blitz, quando a faixa “Eu me amo” era invadida por uma bateria de escola de samba.

“Acho que é meu disco mais português”, diverte-se a vascaína enfatizando a presença do 7 cordas (“o Rodrigo começou a tocar com a Beth Carvalho aos 17 anos”) e associações com a ex-colônia lusa, Angola, na faixa de abertura, “Brasileiro”. Trata-se de uma composição do angolano Teta Lando, que vive em Luanda. No original, o título era “Angolê”. “Ouvi essa música e achei que era a cara do Brasil com uma mensagem ingênua do inconsciente coletivo nacional”, descreve. Fernanda fez uma adaptação da letra e a melodia reiterativa foi calçada pelas cordas das “Bachianas brasileiras”, numa elegante e provocadora orquestração de Eumir Deodato sob regência de Jaques Morelenbaum. Fernanda chamou Martinho da Vila ­ embaixador informal entre as culturas dos dois países ­ para dar seu recado. Ele chegou com esse texto que eu achei incrível. Me remeteu aos meus tempos de luta estudantil”, brinca.

Outra presença básica no repertório é Jorge Ben Jor, de quem ela pinçou na inesgotável mina do clássico “A tábua de esmeralda” (1974) a obscura “Eu vou torcer”, que prega a paz. Fernanda fez algumas adaptações na letra com o consentimento do autor. Para generalizar a mensagem, trocou “moças bonitas” por “coisas bonitas”. E a alma cruzmaltina falou mais alto. “Eu disse a ele que não podia falar em torcer pelo Mengão”, ri. Completa a adaptação para a atmosfera do disco um arranjo com sitar e tablas, que confere um tom Gandhiano à torcida positiva da letra.

Já a levada inicial “benjoriana” do violão de Rodrigo em “Zazuê” (Fernanda/Rodrigo/Jr. Tostoi) motivou o convite ao homenageado que enfiou uns contracantos na faixa. “Queria falar do OECharles anjo 45´, o Robin Hood dos morros, mas transportar a situação para os dias atuais”, historia Fernanda. “Bidolibido” (Fernanda/Rodrigo/Jovi Joviniano) agudiza a sensação de que mesmo os relacionamentos amorosos podem estar submetidos à urgência da vida em tempo real. “Você é meu vício/ num dia difícil/ só conto com isso”, flagra a letra. E o processo de composição da música “pediu” uma inserção de “De noite na cama”, de Caetano Veloso. Em tecla próxima, a “balada básica” “2 namorados” (Fernanda/Pedro Luís/ Plínio Gomes) mistura cinema e romance. Na construção das imagens da letra, ela rebobinou o “travelling” do cineasta Jean-Luc Godard sobre o corpo de Brigitte Bardot no filme “O desprezo” e acrescentou um toque francês nos intermezzos cantados por seu irmão Felipe Abreu e a produtora Janaína Linhares. “Tenho uma inclinação para a crônica e eu fico querendo fazer coisas mais pessoais”, confessa ela. Na circular “Sol-lua” (Fernanda/ Rodrigo Campello/ Suely Mesquita), a intimidade vira familiar com a participação da filha caçula Alice, metade da dialética de opostos que forma com a irmã mais velha, Sofia.

Aberta por samba de surdo e pandeiro que se desenrola num funkão, “Padroeira debochada” (Fernanda/ Maurício Pacheco/Fausto Fawcett), outra anti-ode a Copacabana, nasceu das conversas semanais que costuma ter com o parceiro Fausto Fawcett (presente na faixa), onde concluiu que não há mais para quem rezar. “Não tem pra Jesus Cristo/ e São Sebastião?/ não tem pra ninguém”. “Vida de rei” (Fernanda/César Farias/Ivo Meirelles) exalta ­ com a participação e parceria do próprio ­ a figura do mangueirense Ivo Mereilles. “Ele nasceu e cresceu e se projetou na Mangueira. É um exemplo para mostrar que a favela não forma só reis do tráfico de drogas”, separa ela. Já “A onça” (Fernanda Abreu/Rodrigo Campello) decupa com minúcia poética o estado de tensão do animal urbano entre a jaula, o medo e a raiva. A voz da cantora é trabalhada eletronicamente num realce que configura o pano de fundo vibrante do disco, todo pautado no estúdio da cantora, o Pancadão. A utilização do “scratch” a partir de CDs foi possível graças ao equipamento CDJ-1000, da Pioneer, que ela adquiriu especialmente. “Todos os samples usados são de gravações do próprio disco”, detalha.

Na paz fecha com dois sambas. Um inédito, “Sou brasileiro” (Jovi Joviniano/Thomaz de Aquino), “uma versão menos ingênua do mesmo tema da faixa de abertura”, e o clássico “Não deixe o samba morrer” (Edson/Aloisio), sucesso de Alcione de 1975. “Esta música me passa um sentimento primitivo do que é o Brasil, um país hoje meio descaracterizado pela conjuntura internacional. É como fazer uma terapia por hipnose para recuperar essa essência perdida”, acredita. Entre a maturidade e a reflexão, os “grooves” e levadas inventivos do substancial Na paz sacodem o esqueleto, mas não deixam ninguém de cabeça oca.

Tárik de Souza, Julho/2004