por Fausto Fawcett

Fernanda gravou o segundo disco grávida. A barriga virou cúpula de gravidez – e o ventre – capela de carne aonde rolava a reza da gestação de Sofia. SLA II gerado sob o signo de Sofia. Aguçada, refinada, agulhada pela gravidez, Fernanda teve sua imaginação musical e textual, sua inspiração, totalmente ampliada, superlativizada, influenciada pelo cio da gravidez. Cio de sensibilidade estranha, sensações inesperadas, borestes orgânicos, movimentações sorrateiras no corpo, a mulher naquela de casulo fêmea. Fernanda estava linda como sempre, com aquela barriga cúpula de gravidez, ventre capela de carne onde rolava a reza da gestação de Sofia. A menininha, como todo o bebê, é gente, mas também é meio céu, quero dizer, absoluta amplidão que te deixa na excitação, ligação, reflexão sobre origens e chegadas. Não é mole carregar um céu na barriga.
Ligadona organicamente, aguçada em todos os seus perímetros de inteligência corporal e mental, Fernanda meteu bronca e desenvolveu maravilhosamente o que já havia começado no primeiro disco. SLA II é uma nova viagem de afirmação de um sentimento-vocação-visão de mundo, calcados, inspirado pela instância da condição humana, ligada aos fenômenos de prazer gerados pelas evasões, fugas, alterações, perturbações, iluminações, diluições do ego, da razão da consciência, do juízo, dos cotidianos claustrofóbicos. Instância da condição humana que é contraponto-rival da vocação civilizatória, gregária, racional, social que nos guia todos os dias. O disco é uma homenagem a todo fenômeno de prazer que transforma qualquer coisa, ato, presença, pensamento, imagem, atração física em manjar de iemanjá desgovernada. O disco foi gravado sob o signo da gravidez, da potência de intensidade que esse estado interessante gera numa mulher, fêmea fortalecida carregando um céu. As músicas Jorge de Capadócia e O céu pode esperar são belas derivações do prazer desse estado interessante. O disco é um mergulho na inspiração que essa primordial e mais poderosa instância da vida detona nessa morena chamada Fernanda.

Sob o céu da inteligência sensual

O que interessa para Fernanda é o âmago sensual da inteligência. Be sample. Inteligência movida pelos insinuantes motores do êxtase, do júbilo, do gozo, do amor qualquer que seja, do tesão brega sórdido, da suspensão dos sentidos, da luxúria, dos sonhos e pesadelos que viram sensações gostosas, da delícia, do deleite, da inquietação gratuita, da dança anestésica, do torpor que é conforto efêmero, do luxo ostensivo, das graças, das futilidades cosméticas, das divertidas amarguras cínicas, das alegrias dementes, dos lapsos de consciência que são felicidades abruptas, das gargalhadas festivas, dos sorrisos maliciosos, dos prazeres que são fenômenos de alienação inspiradora, da lucidez gerada pela consciência do desejo que é conhece-te a ti mesmo paralelo à razão, insinuantes motores da inteligência cujo âmago é pulsação de sensualidade querendo tomar tudo de assalto. A inteligência como malícia que injeta vigor de mutação no mundo. A inteligência é malícia mutante reinventando, distorcendo, influenciando todos os corpos, todas as superfícies, todas as energias do planeta em prol da sua vaidade insaciável. A inteligência é uma espécie de vaidade insaciável e seu âmago é sensual vontade de poder, movida pelos insinuantes motores do gozo, do êxtase, da plenitude, do desejo, que são línguas umbilicais nos lambendo, chamando, nos ligando à fúria das matérias e energias se engolindo no rolo compressor do universo em eterna mutação. No rolo compressor da natureza em eterno trabalho de parto, sedução e morte. Forças caóticas do universo e da natureza que cobram pedágios das normalidades criadas por nós em forma de raios de dúvidas e básicos instintos transformados em fúrias de afirmação vital. O disco é uma homenagem aos fenômenos de prazer gerados pelos insinuantes motores de um conhece-te a ti mesmo paralelo à razão – desejos, desejos, desejos…

Sob o céu do sampler

No primeiro disco, o sampler teve um papel importantíssimo na confecção do clima das músicas. No segundo, virou vedete total, apêndice constante de todas as guitarras, baixos, concepções rítmicas, etc. O sampler é um gravador-sintetizador, que captura, acumula e serve para distorcer, deslocar qualquer pedaço de som ou de música, além de permitir a criação de músicas calcadas em seqüências de fragmentação.
Máquina de reinventar, remanejar, recriar sons. Máquina que permite a criação de músicas a partir de outras músicas. Também pode transformar fragmentos sonoros e musicais em fantasmas sonoplásticos rasantes, interferindo em outras músicas. O homem é sampler orgânico. O cérebro é sampler-víscera-mor. More sampler. O corpo é sampler? É divertido imaginar as pessoas como máquinas de vísceras inquietações estimuladas por influências de promíscuas inter-relações com as substâncias do mundo. Máquinas de vísceras, inquietações de nervos transpassados por magnetismos provocados por eletricidade provocada pelo sangue provocado pelos sensores provocados por impressões exteriores e subjetivas manifestações, provocando vísceras inquietações… Os homens são máquinas que inventam outras máquinas, próteses, instrumentos que são extensões, exteriorizações, materializações de processos orgânicos, mentais, corporais que ampliam sua capacidade de influenciar o mundo. Cada máquina é uma espécie de espelho onde os humanos observam o funcionamento, a caricatura mecânica e cibermética de seus processos orgânicos. Máquinas são alívios. O sampler, assim como outras máquinas, é a caricatura cibernética do processo cerebral-metal. Milhões de fragmentos da realidade entram incessantemente no cérebro como curto-circuito de estalos eletromagnéticos de percepção que se chocam, gerando combinações e recombinações de realidade transmutada. A realidade dentro do cérebro vira veloz labirinto de mosaicos mutantes. O mundo, enquanto quintal da atividade humana, é um labirinto de mosaicos mutantes. O sampler pega todas as formas de vida musical e sonora e nos permite criar labirínticos mosaicos de sonoridades mutantes.
SLA II é uma viagem deliciosa por esses labirintos. Não só nas músicas, mas também nas letras, Fernanda explicita a inspiração que o sampler detona enquanto metáfora da fuga, da obsolescência, da distorção, da chegada e partida, do nascimento e morte dos sentimentos, das sensações, dos pensamentos que toam conta do ser humano. Músicas como Breve História do Tempo e O Estado das Coisas vão fundo nessa visão da vida como fluido fluxo de flutuações sensoriais, mentais, sentimentais, sensuais… Em SLA II, Fernanda, juntamente com Liminha, Fábio Fonseca, Sergio Mekler e Chico Neves, desenvolveu maravilhosamente o que já havia começado no primeiro disco Swing-moldura, servindo de estimulante nave musical pulsante para flagrantes sorrateiros, diretos, inesperados da vida objetiva e subjetiva. SLA II, SLA II, SLA II…

Fausto Fawcett