Este disco já nasceu na forma de um projeto especial, diferente de um “disco de carreira”.O principal motivo foi a vontade de mostrar um pouco do trabalho que venho fazendo ao longo desses anos, mas, de uma forma variada (remixes, releituras, regravações e inéditas). Essa espécie de revisão, esse “Raio X”, surgiu basicamente da necessidade de pensar, e confirmar minha identidade musical, que inclui a idéia de localizacão, origem,nacionalidade e vivência.) Apesar de estar na estrada à algum tempo (desde 82), com a Blitz, não tenho uma estrada autoral tão grande assim a ponto de fazer uma “coletânea discográfica”, mas pra mim, esse caminho iniciado em 90 (a partir da minha carreira solo), parece suficientemente longo pra se contar uma pequena história. Uma história construída em cima do som dançante, do balanço, do suingue,do groove.
Uma história de muito trabalho, mas também de muito prazer, principalmente por poder contar com amigos especialíssimos, que de uma maneira ou de outra influenciaram e influenciam meu trabalho. Nesse CD fiz questão de mostrar parcerias muito legais que fiz no decorrer desses anos. A mais consistente, instigante e duradoura foi com Luiz Stein (responsável não só mas também, pelas capas dos discos, vídeos e cenários dos shows). Essa representação visual é fundamental na afirmação dessa identidade, dessa “autoralidade”. Por isso achei que essa parceria merecia ser mostrada de uma maneira especial, através de um vídeo e de um pequeno livro de fotos que fazem parte desse projeto.
Outro fator que me fez pensar nesse disco, foi estar na estrada excursinando durante um ano e meio com o show “Da Lata”. Chegamos a gravar três shows que fizemos no Palace em São Paulo pra lançar um provável disco ao vivo (já que o repertório era bem representativo da minha carreira), mas achava pouco pra traduzir o que eu queria e sentia. É como se eu tivesse vivido muito, em muito pouco tempo. Fiz muitos shows. Vi muitos cantos do Brasil. Muito Brasil. Muita riqueza. Muita miséria. Muita mistura. Muito contraste. Muita gente legal. E muita platéia legal. Saí com o Rio de Janeiro na bagagem e voltei com o Brasil. Poder contar com o olhar e o suingue de Pernambuco do Chico Science, da Bahia do Brown, de São Paulo do Abujamra, do Rio do morro da Mangueira por exemplo, tornava esse projeto bem mais interessante pra mim. Uma espécie de revisão atualizada, numa edição revista e ampliada.
O repertório do CD então, naturalmente acabou sendo quase o roteiro do show “Da Lata”. As músicas escolhidas para serem remixadas, relidas, e mesmo a concepção das músicas novas partiram desse “mote”. “A noite”, “Voce pra mim” e “Speed Racer” são do primeiro disco “SLA Radical Dance Disco Club”. “Rio 40 graus”e “Jorge de Capadocia “são do segundo” “SLA 2 – Be Sample”. “Veneno da Lata”, “Garota Sangue Bom” e “E hoje” são do terceiro “Da Lata”. Entre as regravações tem “Katia Flavia” e “Aquarela Brasileira”. O Bloco Rap -Rio é uma grande colagem em homenagem ao Rio e as músicas inéditas são presentes de amigos. “Um amor,um lugar” do Herbert Vianna e “Jack soul brasileiro” do Lenine.
fAiXa a FAixA, pOr feRnAndA
Vou tentar, resumidamente, contar um pouco da HisTóRiA de cada uma das faixas desse disco de muitas hIStóRiAs. Mas, o mais legal de todo o processo foi disparado a possibilidade de trabalhar e cONhEceR melhor pessoas que eu AdmIrO muito (artistas, músicos e técnicos). Este é um disco desses tALentOS. Valeu galera. AtÉ…
1- “Raio X”,a vinheta de abertura, é a faixa editorial do disco. Queria que as pessoas ouvissem o CD e já soubessem de cara do que se tratava. Chamei o Chacal porque ele é o cara que transforma uma idéia, um conceito, em poesia. “Be Sample”, e “A Lata” são emblemáticas. Um dia conversando sobre o nome do CD, falamos sobre biografia, discografia, releitura, remix, revisão, então pensamos em abreugrafia revista e sampleada e finalmente “Raio X – Fernanda Abreu / Revista e Ampliada”.Grande Chacal. Uma pessoa chave. Abre portas.
2- “Aquarela Brasileira” já estava na minha cabeça desde o CD “Da Lata”. Esse samba-enredo inspirou a composição de “Brasil é o país do suingue”.Já ouvia essa música desde pequena e me aproximei ainda mais dela, quando tive a oportunidade de canta-la num show que participei com a Velha Guarda da Mangueira. Lá conheci grandes sambistas e músicos. Alguns deles estão nessa faixa. E ainda conto com o groove do Suzano. É samba. Ficou samba.
3- “Jack suol brasileiro” é outra história. Fui fazer um show em N.Y. em julho de 96 num evento em que também foram tocar: Chico Science e Nação Zumbi, Mundo Livre, Lenine e Suzano e ect… Numa noite fomos ao S.O.B. para dançar e beber. Otto, percussionista do Mundo Livre, começou a cantar a “Cantiga do Sapo” de Jackson do Pandeiro em cima de uma base de Hip-Hop. O rap-repente ficou muito bom. Vi que tinha um lance ali. Quando cheguei, liguei pra pessoa certa pra fazer essa conexão Rio-Nordeste: Lenine. A música ficou excelente. Chico Neves foi clássico. Valeu Lenine. Valeu Otto.
4 – “Um amor, um lugar” é uma composição do Herbert (Vianna). Conheço o Herbert desde da época da Blitz. A gente se reencontrou no disco “Império dos Sentidos” do Fausto (Fawcett), logo depois produziu a minha primeira demo e levou pra gravadora. Daí produziu com Fabio Fonseca o primeiro disco (“SLA Radical…”), tocou no segundo (“SLA 2-Be Sample”), tocou, cantou e inspirou (com o CD “Severino” e “Ê Batumaré”) o terceiro (“Da Lata”) e compôs, cantou, tocou e escreveu pra esse. Fez uma linda canção falando de amor. Muito romântica e otimista. Arrebentou. Chico (Neves), mais uma vez, foi clássico. ƒ Herbert, um beijo. Grande artista e grande amigo.
5- “Rio 40 graus” também começou em N.Y. Eu e Chico (Science) ficamos mais próximos, (porque até aí, nós só nos encontravamos quando dividiamos shows), então tive a idéia de convida-los (ele e Nação Zumbi) pra fazer uma leitura de “Rio 40 graus”. Desde o início do projeto tinha certeza que os caras iam criar um super groove pra essa música, e que a letra de “Rio 40 graus” iria ficar sensacional dita da boca do Chico. Deu no que deu. Mangue-beat na cabeça. Foi ótimo trabalhar com eles. Detalhistas, exigentes e muito gente fina. “A ciência que o Chico me deixou é genial -tem côco, embolada, maracatú e mangue-town”. Aí galera do Nação: isso é só o começo.
6 – “Jorge de Capadócia” era outra música que eu já tinha na cabeça a idéia de chamar o Brown pra fazer. Fui à Bahia, no Candeal, comi um super cozido da Dona Madalena (mãe do Brown), ele veio ao Rio, mas só no dia da gravação é que conseguimos nos concentrar no arranjo. Chamei o Chico (Neves) e o Berna e num Pró-Tools fizemos um verdadeiro batuque digital com os grooves que o Brown ia “levando”. Ele tocou todos os instrumentos da faixa, menos alguns que utilizamos da gravação original e alguns sons criados por Chico e Berna. Adorei o resultado. Brown é mesmo um cara especial. É energia de criação bruta o tempo todo. É isso aí,meu Rei.
7- “Speed Racer” é uma das minhas músicas favoritas. Ela nasceu no estúdio, na gravação do primeiro disco. Eu tinha a letra pronta mas a música e a melodia não eram muito legais então o Herbert pegou a guitarra e compôs essa música linda em que se transformou Speed Racer. Como ela foi criada a partir da guitarra ninguém melhor pra fazer uma releitura dela do que Fernando Vidal (guitarrista excepcional) e Aurelio Dias (grande maestro). Eles dois, mais Bodão (baterista), são a alma do meu som. Eles tocam comigo desde do meu primeiro show solo em 1989. Criaram um arranjo lindissimo e emocionante valorizado pelo arranjo de cordas. Valeu galerinha.
8- “A noite” foi o meu primeiro single lançado em 1990. Essa época me lembra muito São Paulo. Não saía de lá.Por outro lado eu e o André já tinhamos pensado em trabalhar juntos antes. Já gostava dos Mulheres Negras e adoro o Karnak. E o André é um cara muito talentoso e com grande senso de humor. Ao mesmo tempo ele trabalha direto com o Evaldo Luna (engenheiro de som que também trabalha comigo desde o início. É um cara que veste a camisa, e ainda faz um grande trabalho como fotógrafo, registrando praticamente todas as tournês). Juntos criaram esse remix pra “A noite”. Arrasaram. Dá-lhe S.P.
9- “Você pra mim” tinha a responsabilidade de ter sido um sucesso radiofônico. Serginho (Sérgio Mekler, editor de som e imagem e grande amigo desde os tempos de PUC) disse que queria fazer essa música. Então junto com Berna e Kassim (Acabou La Tequila), fizeram algo dificil de descrever e genial de ouvir. Quando eles me mostraram o rascunho do remix, adorei, mas achava que a melodia original da introdução tinha que pintar, então tivemos a idéia de chamar o Lulu pra tocar um sitar. Ele arrebentou, como sempre. O engraçado é que durante a gravação, a gente brincava e se referia a essa faixa como “O remix dos 3 Nerds”. So cool.
10 e 11- Os remixes das músicas “Garota Sangue Bom” e “Veneno da Lata” queria fazer com uma galera de fora. Mas não podia ser ninguém “caindo” de paraquedas. Tinha que ser alguém que conhecesse o meu trabalho e um pouco de música brasileira. Então chamei o Will (Mowat) pra fazer “Garota…” porque já tinha produzido parte do CD “Da Lata”. “Veneno da Lata” é outra história. Eu estava no estúdio Mega gravando e o Planet Hemp também, então o D2 me chamou pra gravar uma participação no disco deles e conheci o Caldatto, que mais tarde, se interessou em fazer o remix. Os dois ficaram bem legais.
12- “Bloco Rap-Rio” saíu do show “Da Lata”. É uma colagem de trechos de músicas, numa espécie de pout-pourri criado em homenagem ao funk e ao samba do Rio. Como eu queria a presença da galera que, pra mim, representa o novo som da cidade e queria gravar “Katia Flavia” numa faixa separada (no show ela fazia parte do Bloco-Rap), tive que reformular tudo. Então Aí eu e a banda fomos pro estúdio e gravamos uma especie de “roteiro” musical que costurasse essa colagem. As participações do Rappa, Planet Hemp, B.Negão, Arícia, Fausto, Laufer e Jovi foram sensacionais. Os D.J.’s Zé Gonzales e Rodrigo nos scratches deram o tom que faltava pro clima da faixa. E pra tirar o som, num clima “ao vivo”, ninguém melhor que Evaldo Luna.
13- “Katia Flavia” é um marco pra mim, Não consigo pensar em rap e funk carioca sem pensar em “Kátia Flávia”. Um disco que fala desse universo, dessa linguagem, não podia deixar de reler essa pérola. Além do mais, Fausto (Fawcett) é o grande poeta da beleza e do caos da cidade do Rio de Janeiro, e é um dos meus melhores amigos .Memê, no telefone,me intimou a dar-lhe essa música pra produzir. Tudo a ver. Mais uma vez,ele arrebentou. Olha a Louraça Belzebú aí, gente. Amém,Fausto,amém.
14 – Na faixa “É hoje” nem pestanejei em chamar o Ivo Meireles e o Funk’n Lata pra mostrar o valor do verdadeiro samba-funk. O Ivo é um cara sensacional. É um cara novo e já tem muita história pra contar. Já é um clássico na Mangueira. Esse trabalho com o Funk’n Lata é muito bom.Política e musicalmente. Tudo que a gente quer no Rio é democratizar a música, é poder ouvir o som que essa galera nova, que mora no morro, tá fazendo,e não só o som do alfalto classe média- zona sul. Afinal, o morro é o reduto dos bambas. É isso aí, Ivo Meireles. Aí tá certo.
Começar o disco com o pessoal da velha guarda da Mangueira e terminar com o som do Funk’n Lata,pra mim, sintetiza toda a idéia do disco. Idéia de que,nesse país miscigenado e antropofágico, a nossa tradição cultural e racial vêm do verbo misturar. Um disco que mistura Tambor de Maracatú, Timbau da Bahia, Bumbo eletrônico e Surdo de Samba a serviço da música pop dançante e brasileira.Não preciso nem falar da utilização de Pró-tools,Samples, Macintosh’s e tecnologia em geral nesse caldeirão, porque já são parte orgânica do meu trabalho e da linguagem pop universal. Acho que esse disco afirma a idéia de que a partir dos anos 90 a Música Pop Brasileira mistura, de uma maneira mais efetiva, o “Brasil” na sua linguagem. Ser brasileiro, pra ser do mundo. Do particular pro geral. Sangue bom nas veias desse Rio brasileiro,ampliando seu batuque para o mundo inteiro…para o mundo inteiro…
fERnAndA aBReU