por Hermano Vianna

É como o problema do ovo e da galinha: o que vem primeiro, o desejo/a idéia de se fazer alguma coisa ou o instrumento para executá-la? Não importa a resposta: a invenção do sampler era necessária. Quando o instrumento surgiu, já sabiamos exatamente o que fazer com ele. Não que o sampler tenha sido construído exatamente para isso. Antes de sua invenção, e de sua utilização pelos músicos, ninguém poderia saber ao certo qual seria a sua utilidade. Mas a colocação do primeiro sampler no mercado teve o efeito de uma revelação religiosa: como foi possível vivermos tanto tempo sem samplear?

A verdade é que sempre sampleamos, sem saber pecisamente o que estávamos fazendo, sem ter como nomear aquilo que fazíamos. O sampler – o instrumento – chegou não apenas para facilitar as coisas, mas para nos dar consciência do que tínhamos feito até então e, mais importante, para acelerar nosso processo de criação, mudando radicalmente sua qualidade.

De repente tudo ficou claro: qualquer pensamento sampleteia outros pensamentos; a literatura de William Burroughs sampleia outras literaturas; o cristianismo sampleia o judaismo; a arte de Andy Warhol sampleia outras artes; a natureza sampleou moléculas diferentes até produzir a vida. Houve um tempo em que a criação pretendia ser totalmente original. Houve um tempo em que a história (e a física) simulava ser linear.

Hoje, o sampler (a maneira sampler de ver o mundo – o be sample) nos libertou da busca da linearidade e da pureza perdida. Afinal, quem precisa do totalmente novo e do absolutamente original, quando combinar o que já existe pode ser mais divertido e nos proporcionar mais surpresas?

Divertido pode ser a palavra certa: não foi à toa que o sampler encontrou seu veículo ideal na dance music. O pessoal do hip hop já utilizava o toca-discos como instrumento musical, inventando música com a música dos outros. Foi com o hip hop, mais do que com a música concreta (ou com as composições futuristas – a arte do barulho – de Luigi Russolo), que a música se revelou integralmente como colagem sonora. Com a invenção do sampler, os músicos do hip hop (e depois da house, e depois da techno) continuaram a ser os músicos mais radicais em matéria de apropriação de sons de todas as procedências.

Melhor: o público aprendeu na pista de dança a lidar com a estética de choque desenvolvida pelo sampler. O comércio e o extremismo artístico passaram a andar de braços dados, a habitar o mesmo território. O que é extremo lota a pista de dança. Não é mais necessário pousar de vanguarda incompreendida, ou de maldito sem sucesso, para fazer arte radical.

Em Sla II – Be Sample, Fernanda Abreu deixa tudo isso bem transparente. Não é um disco-manifesto, nem deveria sê-lo. O sampler está a serviço da dança, e a dance music a serviço da música brasileira, da música que se faz hoje no Brasil, que pode samplear qualquer outro tipo de música e pode também se auto-samplear (o sampler como o instrumento perfeito para qualquer manifestação antropofágica). A voz de Caetano Veloso e a voz de Lemmy Motorhead, o cavaquinho dos Novos Baianos e o baixo dos O’Jays: tudo vale a mesma coisa no liquidificador digital do sampler. Mas não vou estragar as surpresas: cabe ao ouvinte identificar cada som sampleado. Dançando.

HERMANO VIANNA